A Tragédia de Frankenstein: O Preço de Brincar com a Vida

Frankenstein: Uma Reflexão Filosófica sobre o Criador, a Criatura e a Condição Humana

E se o verdadeiro monstro não fosse aquele feito de partes mortas, mas aquele que cria a vida — e depois a abandona?

Mais de dois séculos depois de sua publicação, Frankenstein ou O Prometeu Moderno, de Mary Shelley, continua nos assombrando — não apenas com imagens góticas ou dilemas científicos, mas com perguntas que ainda resistimos a encarar. Quem é o responsável por aquilo que criamos? Onde começa — e até onde vai — a humanidade de um ser? E o que acontece quando negamos ao outro aquilo que mais desejamos para nós: reconhecimento, afeto, pertencimento?

A criação e o abandono: uma tragédia moral

Victor Frankenstein é o arquétipo do cientista moderno tomado pela hybris — aquela ambição cega que não mede consequência. Ele desafia a morte, invade o domínio da vida… e, quando consegue o que queria, foge. Seu gesto mais monstruoso não é criar, mas rejeitar. A criatura, por sua vez, não nasce má: ela deseja compreender, se conectar, ser acolhida. Mas o mundo, ao vê-la, enxerga apenas deformidade. E então a exclusão começa — silenciosa, cruel, irrevogável.

É impossível não enxergar aí uma antecipação brilhante de debates contemporâneos sobre bioética. Mary Shelley, ainda no século XIX, já nos advertia: criar sem responsabilidade é brincar de Deus sem assumir o peso divino. O poder sem cuidado vira descaso. A ciência sem ética vira tragédia.

Quem é o monstro, afinal?

A inversão que Shelley propõe é desconfortável: a criatura, tida como ameaça, se mostra sensível, ética, até filosófica. Já seu criador, o homem de ciência, age com covardia, vaidade e fuga moral. O que nos faz humanos? A forma ou a empatia? A aparência ou a capacidade de reconhecer o outro?

Há ecos claros aqui de Rousseau — o ser que nasce puro e é deformado pela sociedade —, mas também de uma crítica profunda ao culto à razão descolada da responsabilidade. Frankenstein é, nesse sentido, também uma denúncia da modernidade tecnocrática: a ilusão de que saber basta, de que poder é justificativa.

A solidão e o desejo de ser visto

Talvez o aspecto mais tocante do romance esteja na dor da criatura. Ela não quer vingança, ao menos no início. Ela quer um olhar. Quer um lugar no mundo. Quer reciprocidade. É uma súplica por alteridade: “me veja, me reconheça, me diga que eu existo para além da minha aparência”.

Shelley parece antecipar os existencialistas: sem o outro, o eu desmorona. A criatura só se torna “monstro” porque é empurrada para isso. É um ser negado, forçado à margem. E o mais trágico: é exatamente isso que Victor se recusa a enxergar. Ele não vê um sujeito diante de si — vê um erro, um fardo, um reflexo maldito de sua própria ambição.

Prometeu, Fausto e o orgulho de ser deus

Não é à toa que o subtítulo do livro alude ao mito de Prometeu. Assim como o titã que deu o fogo aos homens, Frankenstein ousa roubar um poder reservado aos deuses. Mas enquanto Prometeu paga o preço por um ato altruísta, Victor é movido por vaidade. Sua punição é a destruição — não imposta, mas construída, passo a passo, por sua própria negligência.

Também há ressonâncias fáusticas aqui: a sede pelo saber absoluto, a recusa dos limites, o preço existencial da onipotência. Shelley não critica a ciência em si — mas o cientista que esquece que criar implica cuidar. Que dar vida exige compromisso com a vida criada.

Ainda lemos Frankenstein porque ainda nos recusamos a aprender

O que torna Frankenstein tão atual não são seus elementos fantásticos, mas o que eles revelam sobre nós. Criamos tecnologias, sistemas, inteligências artificiais — e seguimos tropeçando na mesma questão: o que fazemos com aquilo que criamos? E mais — como tratamos o que não entendemos? O que excluímos por medo, por estética, por arrogância?

Mary Shelley escreveu um romance que parece mito, parece alegoria, mas que é, no fundo, um espelho. Um espelho desconfortável que nos mostra que, talvez, o monstro sempre tenha sido humano. E que a ciência, sem amor, pode ser apenas mais uma forma de abandono.

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