Entre Genes, Chips e Deuses

Uma resenha crítica do livro Homo Deus, de Yuval Noah Harari, que explora os desafios e paradoxos do futuro da humanidade.

Podemos afirmar como será o futuro?

Como podemos afirmar como será o futuro? O mundo traça planos para o que virá, mas esses planos podem mudar. Pensamos de uma forma hoje, mas quem garante que pensaremos do mesmo jeito amanhã? Ter um projeto duradouro é complicado — especialmente em países democráticos. Um governo entra, outro sai, e cada um traz novas propostas. Isso se torna um ciclo em que raramente há continuidade suficiente para consolidar o que foi planejado antes.

Países como a China, que não operam sob uma democracia tradicional, não enfrentam esse tipo de instabilidade com tanta frequência. Afinal, lá não existe o “sai um, entra outro” com ideias radicalmente diferentes. Mas isso também não é garantia de estabilidade eterna — nenhum governo dura para sempre.

Veja o Império Romano: foi o ápice do poder e caiu. O Império Britânico, que já teve colônias em praticamente todos os cantos do mundo, deixou de ser a maior potência. O ponto é: prever o futuro é complicado. Não sabemos nem se estaremos vivos amanhã, quem dirá em um futuro distante.

Como o próprio autor do livro sugere, tudo o que pensamos sobre o futuro é filtrado pelo nosso presente. Hoje, nos preocupamos em acabar com a fome e as doenças. Amanhã? Talvez. Esperamos que sim. Mas vale lembrar: a fome não é causada pela falta de alimentos — o problema está na distribuição. Temos comida para todos. E se fome e doenças forem superadas, o que virá depois?

O ser humano nunca está plenamente satisfeito. A felicidade plena parece inalcançável, porque sempre queremos mais.

A imortalidade é uma vantagem?

Talvez pareça. Mas pense em líderes imortais. Imagine Stalin vivo até hoje. Como a sociedade evoluiria com mentes presas ao passado dominando o presente? Para evoluir, a sociedade precisa de novas gerações no comando. Novas ideias, novas visões. A imortalidade estagnaria isso.

E, claro, você, pobre lascado, dificilmente teria acesso à cura da velhice no começo. No início, apenas os ricos conseguirão pagar. Imagine o preço disso. Ninguém pode comprar tempo… mas e se isso se tornasse possível? As pessoas dariam tudo. Pagariam todo o dinheiro do mundo para ganhar mais tempo.

Se o capitalismo continuar no futuro (e tudo indica que sim), o consumismo terá que continuar junto. Se não gastarmos com doenças, vamos gastar com estética, experiências, tecnologia. As clínicas de câncer podem desaparecer, mas os procedimentos estéticos serão mais comuns do que nunca.

Você talvez nem goste de livros, mas montará uma biblioteca porque é “bonito”. Terá um gramado na frente da casa só porque sim. Um gramado que, no passado, era símbolo da elite — um pedaço de terra inútil só para mostrar status. Hoje, virou padrão da classe média. Quantas casas têm gramado? O autor do livro sugere: não seja idiota. Não imite. Crie algo novo.

A humanidade é maldita?

Outro ponto brutal é sobre os animais que comemos. Trancados, torturados, processados antes mesmo de virarem salsicha. Empatia zero. Pensam, sentem dor, sentem solidão, como nós, mas como não são da nossa espécie, azar o deles. Já fizemos isso com outros humanos durante a escravidão… que dirá com animais.

O ser humano é egoísta, e ponto. Essa é a realidade. E acredite: no futuro, provavelmente não existirão mais animais selvagens, só em zoológicos, e você ainda vai ter que pagar pra ver. O resto será domesticado. Tudo caminha para isso. É só observar: quantos animais criados para consumo existem, e quantos selvagens ainda restam?

O que vem depois de Deus?

Depois de tratar de imortalidade, felicidade e sofrimento animal, Harari conduz a discussão para um ponto delicado: a morte de Deus e o surgimento de uma nova religião, a Religião do Dataísmo.

Sim, você leu certo. O futuro pode ser dominado por uma religião sem deuses, templos ou mandamentos morais tradicionais. Uma religião onde os algoritmos são os profetas, os dados são sagrados e a inteligência artificial é quem decide o que é melhor para nós, mesmo que a gente não entenda como ela chegou a essa conclusão.

Harari afirma que, por milênios, o ser humano viu sentido na vida por meio das religiões, dos mitos e das histórias que contava. Depois, no século XX, surgiram novas religiões seculares: o humanismo, o socialismo, o liberalismo. Mas agora… parece que estamos entregando tudo aos dados. O Google já sabe o que você quer antes mesmo de digitar. O Spotify conhece seu humor melhor do que seus amigos. E os algoritmos de recomendação moldam nossas escolhas diárias.

Quem controla os dados, controla o futuro. E, ao contrário dos deuses antigos, esses novos oráculos não prometem céu ou inferno, prometem eficiência, previsibilidade e controle. O problema? Ao entregar o controle, podemos perder justamente o que nos tornava humanos: a incerteza, a dúvida, o livre-arbítrio (ou a ilusão dele).

Homo sapiens vai deixar de existir?

O título do livro já entrega a provocação: Homo Deus. Se hoje somos Homo sapiens, amanhã seremos o quê? O sonho de se tornar divino. De controlar a morte, o sofrimento e a natureza. pode levar ao surgimento de uma nova espécie, criada por nós mesmos. Com melhorias genéticas, implantes neurais, cérebros conectados à nuvem, e decisões tomadas por IA, talvez o Homo sapiens esteja com os dias contados.

E aqui entra o paradoxo final do livro: ao buscar se tornar Deus, o homem pode deixar de ser humano. Em nome da eficiência, da imortalidade e da perfeição, corremos o risco de abrir mão da empatia, da criatividade caótica, da liberdade de errar. Vamos criar máquinas mais inteligentes que nós, mas talvez menos sensíveis.

Se o Homo sapiens foi capaz de extinguir centenas de espécies, dominar o planeta e modificar o clima em nome do progresso, o que o Homo deus será capaz de fazer?

Vale a pena virar um deus?

Harari não dá respostas prontas. Ele faz o que bons pensadores fazem: nos provoca, nos incomoda, nos obriga a olhar para o presente com os olhos do futuro. Homo Deus não é um livro sobre futurologia barata. É um espelho do agora, exagerado, desconfortável e, às vezes, assustadoramente lúcido.

Se você espera finais felizes, passe longe. Mas se está disposto a questionar tudo, inclusive seu próprio papel no mundo, leia. E depois leia de novo. O futuro talvez seja incerto, mas a nossa responsabilidade sobre ele é indiscutível.

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