Este texto traz informações baseadas no artigo de revisão Advances of epigenetic editing (2020), publicado na revista Cells. No final, você encontra o link para acessar o artigo completo.
Imagine poder controlar os genes como quem ajusta um interruptor de luz. Sem precisar alterar o fio (ou seja, a sequência de DNA), seria possível acender ou apagar funções genéticas com precisão cirúrgica. É exatamente isso que a edição epigenética promete: uma forma de reprogramar células sem mexer no código genético em si — apenas nas marcas que dizem como esse código deve ser lido.
Vamos explorar essa tecnologia inovadora que está revolucionando a biologia molecular e abrindo caminhos promissores para o tratamento de doenças antes consideradas incuráveis.
O que é epigenética e por que ela importa
Nosso DNA é o mesmo em praticamente todas as células do corpo, mas um neurônio e uma célula da pele se comportam de formas radicalmente diferentes. Por quê? A resposta está na epigenética — o conjunto de mecanismos que regulam quais genes serão ativados ou silenciados em cada tipo de célula, sem mudar o texto do DNA.
Esses mecanismos envolvem metilação do DNA e modificações químicas nas histonas (as proteínas que “enrolam” o DNA). Eles atuam como etiquetas de instrução: dizem às células quando ligar ou desligar certos genes.
Agora, imagine poder controlar essas etiquetas de forma deliberada. É isso que faz a edição epigenética — uma forma de interferir diretamente nos interruptores da vida.
DNA com silenciador: Como silenciar um gene usando metilação
Uma das formas mais conhecidas de controle epigenético é a metilação do DNA. Isso acontece quando pequenas moléculas chamadas grupos metil (–CH₃) se ligam a certas regiões do DNA, geralmente próximas aos promotores gênicos — regiões que funcionam como “botões de liga/desliga”. Quando metiladas, essas regiões normalmente impedem que os genes sejam ativados.
Com o avanço da engenharia molecular, cientistas passaram a usar o sistema CRISPR-dCas9, uma versão “desativada” da famosa tesoura genética. Ao contrário da Cas9 ativa, que corta o DNA, a dCas9 apenas se encaixa no local desejado do genoma, como um GPS biológico. Unindo essa proteína a enzimas metilantes, como a DNMT3A, é possível “colar” marcas de metilação de forma controlada.
Esses sistemas já demonstraram resultados promissores, embora ainda sofram com alguns efeitos colaterais, como a metilação de regiões não desejadas (os chamados off-targets), principalmente quando se usam enzimas de origem bacteriana.
Desmetilando genes: A arte de reativar o que foi silenciada
E se quisermos fazer o caminho inverso — reativar um gene silenciado? Para isso, os cientistas recorrem às enzimas da família TET, que promovem a desmetilação ativa: elas oxidam a metilação e facilitam sua remoção.
O sistema dCas9-TET1 foi projetado para levar essas enzimas diretamente aos genes desejados, tentando acordar sequências que estavam adormecidas.
Os resultados, no entanto, são moderados. Em muitos casos, outras marcas epigenéticas continuam agindo como bloqueadores, mesmo após a remoção da metilação. Para contornar isso, os pesquisadores vêm combinando estratégias — por exemplo, unindo o TET1 a coativadores como o VP64 ou a sistemas que amplificam sua ação, como o SunTag, que atrai múltiplas cópias da enzima.
Em modelos pré-clínicos, essa abordagem já gerou resultados notáveis:
- Síndrome do X Frágil: reativação do gene FMR1, silenciado na doença.
- Fibrose renal: aumento da expressão de genes com função antifibrótica.
As histonas entram em cena: Mais uma camada de regulação
Se o DNA é o texto da vida, as histonas são seu suporte físico — as bobinas que o mantêm enrolado. E elas também podem ser modificadas com sinais químicos que afetam a expressão gênica.
As acetilações, por exemplo, abrem o DNA, facilitando a leitura dos genes. Já algumas metilações podem ter efeito ativador ou repressor, dependendo da posição.
Cientistas vêm usando o dCas9 para levar enzimas modificadoras diretamente até as histonas:
- EZH2, G9A, SUV39H1: promovem metilação repressora.
- HDAC3: remove acetilações, silenciando genes de forma mais branda.
- p300: adiciona acetilações ativadoras, especialmente em regiões chamadas enhancers, que amplificam a expressão gênica.
Essas modificações, quando combinadas com a edição do DNA, resultam em efeitos mais duradouros e robustos.
Segunda geração: Mais precisão, menos efeitos colaterais
Como todo sistema biológico, a edição epigenética também está evoluindo. Novas gerações de ferramentas vêm sendo desenvolvidas para aumentar a precisão, modular o tempo de ação e evitar efeitos indesejados.
Entre as inovações, destacam-se:
- SunTag: atrai múltiplas enzimas ao mesmo local, amplificando o efeito.
- Aptâmeros (MS2, PP7): estruturas de RNA que funcionam como “iscas” para atrair proteínas epigenéticas específicas.
- Sistemas com controle químico (CRISPR-CEM) e degrons: permitem ativar ou desativar os complexos com drogas específicas ou em horários programados.
- Domínios divididos: enzimas que só se reconstroem funcionalmente quando duas partes diferentes se encontram no mesmo local do DNA, reduzindo ainda mais o risco de off-targets.
Potencial terapêutico e os desafios à frente
A edição epigenética abre novas fronteiras para tratar doenças sem mexer na sequência genética, apenas mudando o “tom de voz” com que os genes se expressam. Essa abordagem pode ser particularmente útil em:
- Doenças genéticas com genes silenciados, como a síndrome do X Frágil;
- Doenças neurológicas e psiquiátricas com regulação gênica alterada;
- Condições inflamatórias e fibroses.
Mas há obstáculos: a eficiência ainda é variável, as alterações nem sempre persistem e o risco de modificar regiões indesejadas continua sendo um desafio importante.
Um interruptor promissor para o futuro
A edição epigenética é uma ferramenta sofisticada, silenciosa e promissora. Em vez de reescrever o livro da vida, ela marca os parágrafos certos com lápis, permitindo mudanças reversíveis, dinâmicas e cuidadosamente direcionadas.
Enquanto o mundo da biologia caminha para terapias cada vez mais personalizadas e precisas, talvez o segredo não esteja em cortar o DNA, mas em aprender a sussurrar aos genes.
https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1367593120300636?via%3Dihub