Resenha do livro 20.000 Léguas Submarinas, de Júlio Verne, uma das mais influentes da ficção científica clássica e um marco da literatura mundial. Misturando com maestria ciência, aventura e reflexão filosófica.
Introdução
Um submarino movido a eletricidade no século XIX. Um homem que renunciou à humanidade para viver nos abismos. Um livro que, mais de 150 anos depois, ainda provoca fascínio e inquietação.
Publicada originalmente entre 1869 e 1870, a obra 20.000 Léguas Submarinas, de Júlio Verne, é uma das mais influentes da ficção científica clássica e um marco da literatura mundial. Misturando com maestria ciência, aventura e reflexão filosófica, o autor leva o leitor a uma jornada pelos oceanos a bordo do lendário submarino Nautilus, comandado por uma das figuras mais enigmáticas da ficção: o Capitão Nemo.
Mais do que um simples romance de exploração, a obra mergulha em temas como liberdade, isolamento, tecnologia e a complexa natureza humana, permanecendo atual e relevante mesmo após mais de 150 anos de sua publicação.
Contexto Histórico e Literário
Verne escreveu 20.000 Léguas Submarinas em pleno século XIX, uma época marcada por enormes avanços científicos e tecnológicos. A curiosidade pelo desconhecido — seja ele o fundo do mar, o interior da Terra ou o espaço — alimentava a imaginação popular e a literatura.
O livro integra a coleção Viagens Extraordinárias, um ambicioso projeto de Verne que buscava “traçar toda a geografia do mundo nas páginas de um romance”. Sua escrita combinava pesquisa científica rigorosa, visão futurista e grande senso de maravilhamento, conquistando leitores de todas as idades.
Resumo da Trama
A narrativa começa com rumores sobre um suposto monstro marinho que estaria atacando navios. Para investigá-lo, uma expedição parte em alto-mar com três figuras centrais: o naturalista professor Pierre Aronnax, seu criado Conseil e o experiente arpoador Ned Land. Durante a caçada, eles acabam colidindo com a criatura — que se revela, na verdade, um prodígio da engenharia: o submarino Nautilus.

Os três homens são levados a bordo e tornam-se hóspedes, ou prisioneiros, do Capitão Nemo. A partir daí, são conduzidos a uma jornada extraordinária pelas profundezas dos oceanos, conhecendo ruínas submersas, florestas marinhas, espécies exóticas e até mesmo os gelos do Polo Sul. Apesar do deslumbre diante das maravilhas submarinas, cresce entre os protagonistas o desejo de escapar da tutela de Nemo, cuja personalidade revela-se tão fascinante quanto perturbadora.
Capitão Nemo: O Coração Sombrio e Brilhante da Obra
O Capitão Nemo é, sem dúvida, o personagem mais complexo, enigmático e magnético de toda a narrativa — e talvez de toda a obra de Verne. Seu nome, que em latim significa “ninguém”, já anuncia sua recusa à identidade, à pátria e à sociedade. Ele é um homem que se apagou do mundo da superfície para viver nas profundezas do oceano, longe da guerra, da política e da hipocrisia humana.
Um cientista rebelde
Nemo é ao mesmo tempo cientista, engenheiro, explorador, humanista e vingador. Ele criou o Nautilus com suas próprias mãos, alimentado por eletricidade (algo visionário na época), e com ele percorre os mares como soberano absoluto, guiado por uma ética própria. Embora demonstre imensa cultura e profundo respeito pela vida marinha, é também um homem marcado por tragédias pessoais — que Verne, deliberadamente, não revela nesta obra.
Essa dualidade o torna tão instigante quanto ambíguo: ele salva náufragos, resgata tesouros afundados e educa seus hóspedes com entusiasmo sobre o oceano, mas também afunda navios de guerra e guarda um ódio feroz contra certas nações. Ele é movido não apenas pelo desejo de se isolar, mas pela vontade de punir um mundo que considera moralmente falido.
Figura trágica e romântica

A dor de Nemo transparece nas entrelinhas. Embora poderoso e livre nas águas profundas, ele é também um prisioneiro de suas próprias escolhas. Sua misantropia é fruto de um trauma, e sua genialidade, embora brilhante, o empurra para o abismo da solidão. Ele encarna o tipo do “herói trágico” — alguém que, em sua busca por justiça e autonomia, perde o contato com a humanidade.
Em A Ilha Misteriosa (1875), Verne finalmente revela a origem de Nemo: ele seria um príncipe indiano que perdeu a família em decorrência da opressão colonial britânica. Essa revelação retroativa confere ainda mais profundidade ao personagem, transformando-o em símbolo de resistência anticolonial — algo incomum e ousado na literatura europeia da época.
Legado Literário e Cultural
Nemo influenciou gerações de leitores e escritores. Sua imagem foi eternizada em filmes, animações e quadrinhos. É um dos primeiros anti-heróis da ficção científica — um homem que vive à margem do mundo, com convicções próprias, que desafia tanto o vilão tradicional quanto o herói idealizado.
Sua presença no livro é tão forte que, mesmo nos trechos em que pouco aparece, sentimos seu impacto pairando sobre todos os acontecimentos. Ele é o espírito do Nautilus, o arquiteto da liberdade extrema e do isolamento absoluto.
Estilo e Estrutura
Verne mescla linguagem técnica com lirismo. Suas descrições são ricas em dados científicos — especialmente sobre biologia marinha, geografia oceânica e física — e, ao mesmo tempo, capazes de provocar encantamento. O ritmo alterna entre contemplação, suspense e ação, criando uma obra dinâmica e intelectualmente estimulante.
Temas Centrais
- Tecnologia e ciência: O Nautilus é um marco da ficção científica, antecipando o submarino moderno. A ciência é mostrada como algo capaz de expandir os horizontes — mas que também pode isolar e destruir.
- Liberdade e cárcere: O paradoxo da história está no fato de que, sob o mar — símbolo da vastidão e do desconhecido —, os personagens vivem presos, física e psicologicamente.
- Oceano como metáfora: O mar é retratado como um santuário, um refúgio e um mistério. Nele, encontra-se tanto a beleza sublime quanto o terror das profundezas.
- Misantropia e trauma: Nemo representa o homem que, ao se afastar do mundo para não ser ferido, termina por ferir a si mesmo.
Conclusão
20.000 Léguas Submarinas não é apenas uma viagem espetacular pelas profundezas do mar; é uma jornada interior — de descobrimento, conflito e reflexão. O Capitão Nemo, com sua genialidade atormentada e sua ética intransigente, permanece como uma das figuras mais fascinantes da literatura universal.
A obra de Verne nos convida a pensar sobre o preço da liberdade, o valor da ciência e os limites do isolamento como resposta à dor. Em um mundo cada vez mais tecnológico e desconectado da natureza, essa história ainda ecoa com força, fazendo-nos questionar: até onde iríamos para escapar do mundo? E o que sacrificaríamos por isso?
Júlio Verne, 20.000 Léguas Submarinas.